terça-feira, novembro 28, 2006

Crónicas de uma partida an[un]siada #2

Todos os dias planeava levar a máquina fotográfica, no dia seguinte, na mochila. E todos os dias saía sem ela. Mas as suas duas objectivas castanho-esverdeadas sobejavam em lentes, eram rápidas no disparo e tinham memória de vários gigas.

Crónicas de uma partida an[un]siada #1

Ultimamente, vagava a cidade na ambivalência: nunca ter amado tanto essas ruas que lhe pertenciam por direito de nascença, e estar já apartada delas como por uma cortina de vidro que permitisse ver, mas não tocar.

Oscilações

O medo. O desejo de precipício. E o medo. E o desejo de precipício. De novo, o medo. Na volta, o desejo de precipício. Insistentemente, o medo. Persistentemente, o desejo de precipício.

domingo, novembro 26, 2006

Mais Cesariny

AMA como a estrada começa
espaço
espaço
Pena Capital, Mário Cesariny

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem ter o dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Nobilíssima Visão, Mário Cesariny

Mário Cesariny [1923-2006]

O Riso Útil

o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto cor-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor

Manual de Prestidigitação, Mário Cesariny

quarta-feira, novembro 22, 2006

Frase do dia

- Sabe, Dra., eu ando à procura do homem dos 3 oitos: 80 anos, 800 mil contos e 8 dias de vida!
Ela, viúva, de 67 primaveras e sorriso ladino.

sábado, novembro 18, 2006

Quando o céu e a terra se tocam

Hoje percebi que se tocam. O céu e a terra. Ligam-se por pontes aquosas. Para interromper a distância estival. Mais agora, no tempo frio. As nuvens iniciam o pranto, cadenciado o primogénito, taquicardíaco o que lhe segue. Quantas vezes, torrencial. De ritmo e magnitude ditadas pela urgência da saudade. Com o solo a acolchoar a queda, amante silente e atento, em jeito de afago redentor.
Tocam-se, dizia. A terra e o céu. Quando chove.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Must-read posts

A não perder. Sobretudo este: corrosivo e certeiro.

domingo, novembro 12, 2006

Metaphorically speaking

Disse-me que, para ele, o Porto era uma puta. Mas no sentido literário do termo.

sábado, novembro 11, 2006

MostrEM - parte 2

Estuda o Harrison de fio a pavio
autopsia-me com minúcia
passa-me na gama-câmara
exclui-me a glomerulonefrite
extirpa-me o glioma
atende-me na via verde do AVC
faz-me o TC cerebral
vê-me o fundo de olho.
Se preciso, dois ou três ciclos de quimioterapia
a reparação da ruptura do LCA do joelho direito
ou mesmo o exame do cavum.
Pede-me é toda a bateria de análises
não vá eu ter um parainfluenza mal estudado
e depois precisar de consultas de acompanhamento de adolescentes.
O Rx tórax (como deixar de fazê-lo?)
o antidepressivo (como deixar de o prescrever?)
a ecografia abdominal (mas só até às 10h30 da noite)
a radioterapia (esta, só para alguns).
Se ainda assim estiveres às escuras, mais vale pedir uns ANA.
O importante é a saúde da comunidade
e as consultas de infertilidade.

terça-feira, novembro 07, 2006

Alexander Bell e tubos de ensaio

As palavras - acompanhadas, escritas, lidas, trocadas - tinham agora uma voz. As palavras e algumas escassas imagens (tinham agora uma voz). Adquiriram compasso, timbre, entoação, pronúncia. Todos de características diferentes do imaginado.
Era quase como uma reacção química - em que a mistura dos reagentes dá origem a algo previamente inexistente - cor, cheiro, nova substância... Aqui era a voz.
Agora só faltava a voz ganhar corpo.

domingo, novembro 05, 2006

sexta-feira, novembro 03, 2006

MostrEM - parte 1

Estende-me numa lâmina
injecta-me o propofol
toma-me o pulso
corrige-me a transposição dos grandes vasos
transplanta-me um pulmão
ou até mesmo um fígado.
Faz-me depois uma mamoplastia
corrige-me o pé boto
põe-me um stent endovascular
trata-me a couperose a laser
prescreve-me 12 U de insulina
faz-me a hemostase da epistáxis
submete-me a uma EDA
testa-me o DNA
assiste-me no parto e faz-me a episiotomia
pede-me o hemograma
e também as IgEs
transfunde-me 2 UGR.
Dá-me é o antibiótico.
Põe-me a fazer cinesioterapia.
Mas passa-me o P1.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Dia de Todos os Santos (em 4 tempos) - Quarto

Regressei de alma fresca. Como sempre.

Dia de Todos os Santos (em 4 tempos) - Terceiro

Passeei um pouco pelo cemitério. Hoje era um dia feliz. À saída, notei que as árvores também se vestiram a rigor.

Dia de Todos os Santos (em 4 tempos) - Segundo

Varri as folhas. Acendi as velas. Coloquei as flores. Relembrei-te a Deus.

Dia de Todos os Santos (em 4 tempos) - Primeiro

Fiz-me à estrada.