terça-feira, outubro 10, 2006

Imoral(terceira)idade dentro de quatro paredes

Entrou, despachada, no consultório. Setenta e dois anos, boas cores, óptimo estado geral. Queixas? As do costume. Do costume, para quem tem patologia osteodegenerativa da coluna. Não fosse o diagnóstico e os resultados das TCs anteriores estarem escritos no processo da doente, e não se adivinhava só de olhar.
Mediu-se a tensão, auscultou-se, renovaram-se as receitas. E a conversa vai fluindo. Conta a senhora que procura um trabalho. Emprego não, que já não tem idade para isso. Mas um trabalho. Para ter desculpa para não estar todo o dia encafuada em casa, mas sobretudo para ganhar algum dinheiro. Vive com o único filho, nora e neto que já frequenta o secundário. É ela que cozinha, limpa, lava a roupa e engoma para todos. Não escuta sequer uma palavra meiga. Um agradecimento. Fica sempre de fora das férias familiares. E ainda põe dinheiro (uma vintena dos antigos contos) para as despesas da casa. E teve parcos dias estipulados para ir chorar a morte da irmã, aqui há tempos. Que o serviço da casa não podia ficar por fazer. É a nora, diz. Detesta-a. Aguenta-a pelo filho. Pelo neto.
Eu e minha colega entreolhámo-nos. Aconselhámo-la a procurar talvez uma distracção, fazer companhia a pessoas idosas e doentes, grupos de actividades culturais, lembrámos que esforços exagerados poderiam piorar uma situação clínica estável e controlada, indicámos-lhe algumas instituições e grupos... Ela disse que já tinha pensado nisso... Mas não podia estar fora de casa muitas horas. Ai, se eu não faço o serviço!... Prometeu pensar sobre o assunto. No entanto, depois de se despedir, enquanto fechava a porta, ainda nos lançou a pergunta:
- Mas como é que eu, assim, me torno independente?