Li: Ca da vulva em fase terminal. Não imaginei um cenário bonito. Estava a consultar o processo, não conhecia ainda a doente. Quando entrei na enfermaria, acompanhada de uma colega mais velha, deparei-me com uma sorridente senhora de 80 anos, a quem a filha fazia companhia. Afável, super-lúcida, apenas ligeiramente queixosa. Estava ansiosa por ter alta e regressar a casa. Como já vinha sendo habitual, sobretudo ao longo do último ano. Internamentos de repetição para gerir intercorrências agudas. A doente não foi diagnosticada a tempo por vergonha de ir ao médico. Andou 30 anos com o tumor a crescer. Trinta anos. Agora, o basocelular tinha-se estendido a toda a bacia. Eu nunca tinha visto nada assim. Afiançaram-me que provavelmente nunca iria ver nada igual. O tumor invadia a vagina, o útero, a bexiga, a coxo-femural esquerda, o intestino. Na verdade, toda a bacia daquela mulher era o tumor. Confinada a uma cadeira de rodas, estava colostomizada, algaliada e tinha uma ferida colossal. Nem me atrevo a descrever. Valia-lhe o acompanhamento do anestesiologista da consulta da Dor Crónica. E a filha, zelosa. E o seu estoicismo. Houve um momento em que não aguentei. Nasceu-me um nó na garganta, e, aproveitando a colega estar a falar com a senhora e a familiar, discretamente, olhei pela janela: um entardecer lindo. Não sei se foi por olhar o Douro, mas os meus olhos encheram-se de lágrimas e apeteceu-me mergulhar na profundeza do rio. Respirei fundo, segurei as lágrimas como pude. Não cairam. Ainda bem. Mas o meu coração minguou. Já voltei para casa e ele ainda não recuperou o tamanho original. Talvez amanhã.
sábado, dezembro 09, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
É delicado comentar este texto, não sei fazê-lo de todo, apenas dizer que gostei muito.
Muito, muito.
beijos
Enviar um comentário