terça-feira, junho 03, 2008

Adiar

Não devemos adiar. Sobretudo as coisas importantes. As inadiáveis.
Mas até essas adiamos, porque agora estamos com pressa, pressa de chegar, de fazer, de sair, sempre os prazos, os compromissos, as deadlines (ah, essa expressão tão cheia de significado)! Mas a verdade é que não morremos se não cumprirmos um prazo. Podemos, sim, complicar a nossa vida, perder uma oportunidade no trabalho, um evento importante.
Mas não, não morremos.
Não devemos adiar. As coisas inadiáveis. As despedidas. Sem o sabermos, até. Esses instantes de conversa que podem ser uma despedida.
Sempre tive tempo para ele. Toda a gente o conhece no Serviço. Um herói. Conheci-o pouco depois de ter começado a trabalhar ali. Nunca foi meu doente. Mas toda a gente o conhece dos corredores, da salinha de televisão, dos lugares por onde passeia o saco negro da quimioterapia que o ajuda no combate do cancro metastizado. Um herói. Eu acredito que o que o mantém há mais de um ano nisto é o optimismo. Férreo. A quimioterapia só dá uma ajuda. Nunca foi meu doente, dizia eu, mas, claro, todos o conhecemos, um dos quartos foi durante semanas a sua casa, e a cada ciclo passa lá um dia ou dois, todos o conhecem pelo nome. Eu, tagarela como sempre, e desde que ajudei o colega que era o assistente dele quando ele teve um enfarte agudo do miocárdio, tornei-me amiga dele. Amiga de conversas de corredor, de visitas ao seu quarto, de pedaços da história da vida dele, contou-me muita coisa, como conheceu a esposa, os tempos em Vila Real, os tempos em Angola. Tornámo-nos amigos, vá. O tempo passa melhor quando se tem alguém para conversar. Ultimamente andava mais magro, o apetite a escassear, a anemia teimosa. Desta vez, regressei de férias e andava assoberbada, não soube imediatamente que ele estava internado, estou noutra ala. Cruzei-me com ele nos elevadores, sorridos rasgados, Como tem passado?, Tenho de arranjar um bocadinho para darmos duas de conversa!, Oh, Dra., eu não vou a lado nenhum, vá lá tratar das suas coisas e depois falamos.
Ele nunca foi meu doente. E por isso, pensei que não havia mal em ofertar-lhe uma coisa. De que tínhamos falado uma vez e eu sabia que ele gostava. Um mimo para o estômago. Pensei, é amanhã, no dia em que vi o meu colega a falar longamente com a esposa dele no corredor.
No dia seguinte fui à procura dele. Tinha tido alta. Quando voltava? Oh, Dra., acho que não volta. Já não tem condições para fazer mais ciclos, o seu colega ontem esteve a falar com a esposa, a explicar-lhe que já não há mais tratamentos para fazer, que ela agora lhe deixe fazer tudo o que ele quiser.
Ia conversar com ele, como de costume. Sim, estava à vista de qualquer um o abatimento físico, o cansaço a articular as palavras, a palidez cutânea. Mas a chama ainda se mantinha nos olhos e o aperto de mão (embora os dedos estivessem mais emagrecidos) tinha a mesma energia. Perdi essa oportunidade de me despedir. No dia em que levei a caixa para o hospital, ele tinha tido alta e não voltaria. Ainda pensei em mandar-lhe as coisas pelo correio, mas não seria o mesmo. Fiquei mesmo incomodada. Da única vez que não conversámos, ele foi-se embora para morrer. Sem levar a caixa. Coincidência infeliz, decerto. Mas dá que pensar.
Bem sei que não nos é possível adivinhar todas as partidas, todas as últimas conversas, todos os momentos irrepetíveis, todas as despedidas.
Mas era bom que assim fosse. Porque há coisas que não devemos mesmo adiar, sob pena de a morte as adiar eternamente por nós.

2 comentários:

francisco carvalho disse...

Não vou adiar mais eu que tudo adio. Já devia tê-lo dito há uns dias atrás:
Tua alma muito grande.

beijos

Pinky disse...

Oh Francisco... Não devo merecer isso tudo!...
Obrigada e um beijinho.